Abraços,
Ailime
«As palavras pesam. Um texto nunca diz a dor das pequenas coisas» Graça Pires in Poemas escolhidos
Percorro os caminhos de outrora
cobertos de geada.
Nos escombros dos muros o musgo,
onde escorre a fria madrugada
que acolhe os pássaros feridos
de mais uma noite ao relento.
Sobre o rio, neblinas
vertem o orvalho da manhã,
que cava no teu rosto
as cicatrizes da noite,
que te embalam no silêncio
onde mergulhas a voz.
O sol tarda, mas já se anuncia
na cor purpúrea do amanhecer.
folhas caídas sobre o chão molhado
e os líquenes a envolverem-na
como primícias de vida prometida
os pássaros adejam em seu redor
alegres no seu canto sempre mavioso,
indiferentes às estações
e ao vento dos dias gelados
a natureza canta sempre ao amanhecer
e adormece no entardecer
quando as aves partem em debandada
na respiração de novos rebentos.
No tumulto das palavras sinto solidão.
Não é que as palavras não foquem sentimentos,
mas, por vezes, o gume ácido da vida
não deixa que façam sentido.
Na transversal das ruas que percorro
como ave sem penas, ouço à distância
o eco do silêncio que se me quebra na voz.
Há uma infinidade de ruas a percorrer
para melhor entender o significado
do que me rodeia, do que me espanta.
Porque a vida não sendo reta
é feita de sóis e de luas,
de abraços e palavras.
De ecos e resplendores
na partilha dos silêncios.
Sempre caminhei para ti sem saber se te encontrava.
As portas por vezes fechadas, outras vezes abertas,
mas eu não te vislumbrava.
O chão estava coberto de seixos
salpicados por maresias que me perturbavam o olhar.
Nada fazia prever que te encontraria
um dia, por acaso, com uma chávena de café
que me oferecias despretensiosamente
fitando o meu olhar, que se prendeu no teu,
num abandono quase íntimo.
Era outono e as folhas sorriam-nos
como se uma força nos desafiasse
a libertar o esplendor do mundo.
Imagem Net
Nas escarpas do tempo
ouço a tua voz que me fala
das estações que ainda ontem
eram barcos atracados nos cais,
hoje apenas restos de cinzas
esquecidas na velha lareira
onde crepitavam silêncios
a marejar dos teus olhos,
debruçados na solidão das noites.
Dos voos rasantes dos pássaros
a arrastar as sombras
diante da janela florida,
do inverno restou apenas o vento
que segreda em silêncio
os atalhos em que te reconheço.
Por vezes as palavras hibernam
e ficam retidas em silêncio
no mais recôndito do meu ser.
Nem o vento,
nem o voo dos pássaros
as fazem despertar.
Como num sonho
corro atrás delas, tentando libertá-las.
Elas persistem num mutismo secreto,
que me prende a língua
e tolhe os sentidos ausentes
da realidade, que me atordoa.
No esplendor da manhã
abro a janela e deixo que o sol
desperte, no silêncio das palavras,
o rio que habita em mim.
No silêncio das folhas
o eco da chuva que, irrefreável,
nos espanta e das nuvens
vai tombando
como cascatas de pérolas
a brilhar nas calçadas.
Estendo-lhe os braços, as mãos
e acolha-a, como bem precioso,
tão próxima de mim
a desviar-me a atenção
das guerras, dos mal-entendidos,
das frustrações, das impiedades.
No jardim, as folhas acolhem os pássaros
que perderam o norte
e repousam o outono nas tardes dos dias.
Sobre o dorso da terra o gemido
e a busca por dentro e por fora
do precioso líquido
que mitigará a sede do mundo.
Não tardará....
Chegará de mansinho
e depois como um dilúvio
lavará todas as penas
e as manchas
que inundam a terra
e os rios transbordarão.
Uma pausa à espera de resposta
e o arco-íris a espreitar
e a ouvir a minha prece.
Cativamo-nos em silêncio
e em silêncio abrimos o coração
num beijo, que nos estremece
e enternece.
Deixamos que neste entardecer
os sentidos repousem
e nos recordem os cachos dourados
do nosso amanhecer.
Era tudo tão intenso, tão cheio de cor.
Hoje abraçamos o mundo
flutuando na leveza do amor.
O tempo, sempre o tempo, na voz,
como um rio que percorre as palavras
que teimam em libertar-se nas manhãs,
em que o orvalho lhe cinge o olhar
ainda meio adormecido.
Como uma fonte soletra nas águas
os sentidos, em movimentos ascendentes,
no esplendor da manhã a cativar-lhe
as palavras, que se soltam como flores
a desabrochar num chão de primavera.
Retoma o caminho
liberto de sombras e silêncios
e regressa ao tempo, nas palavras,
refletidas no rio.
já era outono.
Ainda ontem colhia uma rosa...
Hoje, das minhas mãos,
caem folhas amareladas
que recolhi no regaço
onde os dias repousam mais cedo,
no sol que se despede
mal a tarde se insinua.
São breves os dias de outono
e as noites alongam-se
para além do horizonte,
onde apenas distingo
no crepúsculo das horas
o silêncio da manhã que tarda.
Rasgava o horizonte com o olhar
e com os dedos agarrava o luar
que se misturava com as cores
purpúreas do entardecer.
Na sua voz embargada
acolhia todos os pássaros,
que voejavam em seu redor
numa discreta contemplação
do esplendor das sombras
que o luar acendia.
Corria-lhe nas veias um rio
onde, como em chão lavrado,
as margens repousavam
e o luar se recolhia.
Tão longa a noite...
Tão breve o dia...
Tinhas nos olhos a sede
de quem sofre a solidão
das noites em que os relâmpagos
abrem crateras de fogo
no tumulto das palavras.
Tudo era tão inteiro
quando enchias o peito
com as cores do arco-íris
e as palavras tão breves
no reencontro dos versos.
Nas folhas caídas, lias as primaveras
recitadas na infância
quando o universo te abraçava
numa dança irrequieta
a balouçar nos braços do vento.
Nas asas do vento descansava
das provações da vida.
O seu coração ficava leve, leve
como pássaros a esvoaçar
em redor da sua cintura.
Decidira não mais se penalizar
por todos os absurdos com que se cruzara.
Era um caminho árduo, silencioso
que lhe ardia sob os pés cansados,
onde não queria voltar.
Como um inseto saltitava
sobre as flores secas e sem cheiro
e redimia-se num casulo de silêncio
numa escarpa junto ao mar.
Ailime
Queria abraçar o tempo como quem
navega à deriva
e rasgar as nuvens com os olhos
como se fossem pássaros,
a poisarem-lhe nas mãos esguias
as tempestades do mar.
Um barco pousou-lhe no rosto
a ondulação dos mares
e dos seus olhos escorreu
a maresia, que ainda a prendia
à escarpa do silêncio
que trazia presa no peito.
Encontrava-se perdida
nas sombras ocultas das névoas.
Apenas o silêncio
lhe devolvia os vestígios
do tempo, que alcançara
sem sequer o vislumbrar.
O verão das sedes, dos fogos, das inquietações,
mas também de águas frescas, de sombras e reencontros.
De desertos, de alvoradas, que anunciam dias claros.
De estradas cheias de pó, de pés descalços no chão que escalda.
Uma mão estendida no meio do nada.
Gotículas de sal a escorrer dos olhares
pelas faces, esculpidas pela dor das distâncias
dos silêncios, onde as palavras se aninham
sem encontrar o sentido das vozes,
que tardam em pronunciar a brancura dum sorriso.
No verão, ao relento, tardam os dias claros.
A noite preenche os vazios do silêncio.
Conhecia de perto todos os mistérios do rio.
De pedra em pedra percorria-lhe as margens
e desvendava o sabor das auroras quando as neblinas
o afagavam ainda antes do refulgir do sol.
E estendia-lhe as redes.
Era um rio límpido, sem mácula, azul de tanto céu,
que brilhava no silêncio da lezíria
como se fora outro lugar onde o trigo ondeava.
Nada era tão puro como a transparência dos barcos,
onde saltitavam os pássaros para captar as presas
que quase afundavam o barco.
A faina era tão leve e a colheita tão farta...
.........
Hoje, apenas um velho barco carcomido,
na solidão do lodo.
Havia um oceano dentro dela
de águas calmas, sem ondulação,
que mergulhava no silêncio das madrugadas
e na paz do entardecer.
Os barcos navegavam à tona
rodeados de corais verdes e azuis
que a cerceavam nas noites
em que as marés fitavam a Lua
e o luar a cingia meio tímido.
Nestes momentos a presença de Deus
tomava-lhe as emoções e o silêncio
era apenas brisa refrescante
numa praia invisível.
Nas palavras, nem sempre o vento escreve o que quer.
À deriva, procura nos lugares recônditos, a luz
que parece obscurecida pelas sombras das florestas,
onde outrora surgiam mananciais e hoje o fogo alastra.
Não há forma de escolher entre as chamas e o vento
o lugar das palavras que parecem afogadas nas cinzas.
Não há hora para ouvir a voz calma do vento e a placidez
das chamas, dissimuladas pela ironia do vento.
Não chegou ainda o tempo de o Homem despertar
para a imagem que cada vez mais vai dizimando
as palavras que o vento espalha
sobre o chão da terra desolada.
Não sabia defender-se dos imprevistos.
Seus lábios calavam a dor do desconhecido.
O seu coração continha as emoções
que tentava segurar entre os dentes
e, as suas mãos, trémulas, prendiam a esperança
que teimava em arredar-se de si.
O sorriso tinha adormecido no seu rosto cansado.
Assim acordou a madrugada
com a notícia que tardava.
Os pássaros voltaram a voar
e a fazer ninho no seu peito.
Na solidão do vento encontro-me com o amanhã.
Os meus braços abrem-se como ramos de árvores
a baloiçarem-se num ritmo frenético
como se o outono surgisse no meio das folhas
que vão caindo amarelando o chão.
Nos muros já não brilham as glórias da manhã
que, ressequidas, apenas das hastes a lembrança
dos eflúvios que aromatizavam o meu ser
que agora preenchem um pacto de silêncio.
Não distingo nas sombras do vento
a claridade dos dias e os sons do alvorecer.
Apenas um pássaro veloz, indiferente à minha sede,
traça no céu as cores da primavera.
Por entre nuvens e céus claros
o tempo corre veloz como pássaros;
nem as trovoadas o detêm
na sua correria louca, intempestiva
como foguetes em dias de festa
a provocarem surdez
quando os foguetes se apagam.
O tempo não esvaece, alastra-se
como fogo impelido pelo vento
e nem as águas o estancam.
O tempo na sua voraz pressa
nem sequer tem tempo
para observar o mundo
onde frenético, voa em liberdade.
Tenho saudades do meu rio.
O meu rio não é um rio como os outros,
porque me corre nas veias,
o que o torna único.
É um rio que me viu nascer.
Um rio com águas bordadas a prata
e com margens tingidas de azul.
A lezíria beija-lhe as margens
numa doce primavera verde
e os pássaros voejam em redor
debicando aqui e ali,
como se entendessem
as maresias e os pores do sol
que sobrevoam os barcos
que trago dentro de mim.
O meu rio é único e belo.
Tão belo,
que cabe na luz do entardecer.
Um dia pode significar uma infinidade de coisas e factos.
Mas num dia não cabe todo o amor que as distâncias separam
todas as saudades que fazem doer o coração
todo o afeto que um beijo pode transmitir
ou o abraço apertado que se dá com um nó na garganta.
Um dia pode significar uma infinidade de coisas e factos.
Mas jamais pode substituir a presença de quem longe
olha o horizonte como se ali pudesse beber da seiva das suas raízes
mergulhar num mar de sentimentos reprimidos
estreitando os laços que teimam em queimar a pele.
Um dia pode significar uma infinidade de coisas e factos.
Lembranças, glórias, vitórias, feitos, conquistas
mas jamais poderá mostrar o brilho do olhar e o sorriso
de quem longe é pródigo em silêncios e solidão
atravessando o dia com uma vontade irreprimível de regressar.
Para o meu filho SS
No som do silêncio
a claridade da manhã
como um cântico
a inebriar-me os sentidos
passadas as sombras
que anuviavam meus dias.
Os pássaros voejam alegres
e pousam na minha janela
o esplendor do voo
como num abraço de paz
acordando as palavras
adormecidas na noite.
Foguetes anunciam a festa
e as palavras bailam desordenadas
ao sabor do vento
desfazendo a solidão.
Rasga-me no peito a dor
da clausura que de ti emerge
de passos no mesmo espaço
onde te confinas com a resiliência
de quem sabe esperar.
Resistes como quem ama
e abraça as dificuldades
como se fossem pequenos sóis
a brilhar na noite escura.
O tempo é apenas um sopro.
Tudo vai ficar bem
quando o coração
busca dentro de si a vida.
Para o meu filho MS
Na escassez das palavras
a sede no deserto
como um rasgão na pele
miragem e silêncio
nas poeiras das dunas
a toldar o pensamento
que clama pelo voo das aves
para dissipar as névoas
Há vazios e grãos de poeira
a marejar os olhos
nos silêncios da tarde
que, em vão, suplicam
que o oásis floresça.
Escorria-lhe da boca o silêncio
que lhe ardia no peito.
Não soletrava as palavras
e os olhos côncavos
imersos num mar em chamas
ateavam nas suas mãos
barcos à deriva
baloiçando ao vento,
sulcando-lhe no rosto
a dor do pranto contido.
Nem o voo dos pássaros
em cantos alegres e claros
lhe soltaram dos lábios
o sabor amargo do silêncio.
Todo o artista põe amor nas suas obras
cinzela-as com todo o cuidado;
seu olhar lapida-as como
se fossem diamantes a brilhar ao sol.
Nem sempre a obra parece perfeita
como nada no mundo é perfeito,
mas o suor escorre-lhe no rosto
as suas mãos tremem de comoção
perante a obra que acabou de criar.
O homem também é imperfeito
na sua imperfeição perde a razão
deixando que a vanglória o arrebate;
num ápice nega o que é perfeito.
O estio adentrava-se-te no ventre
e o teu rosto sorria.
Não que os teus olhos o revelassem;
mas as tuas mãos tremiam e acariciavam
inconscientemente
o fruto que acabaria por brotar em breve,
nesse desatino que sempre te acompanhava.
As cigarras entoavam um crepúsculo
e os teus lábios permaneciam cerrados
num secretismo de dúvidas,
líquidas do silêncio que albergavas
nos gestos inconscientes
que pairavam sobre as águas
e se entranhavam nas pedras.
Nunca entendi o movimento das águas
nem o balouçar do vento
a raiar a linha de fogo
que delineava os teus gestos.